Feminicídio no Brasil: Reflexões e desafios na luta contra a violência de gênero

Erika Chioca Furlan, doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp, especialista em Direito e ex-delegada de Polícia, traz à tona uma reflexão crucial sobre a realidade alarmante das taxas deste crime no país

 

DA REDAÇÃO – Neste Dia Internacional da Mulher, queríamos celebrar as vitórias e avanços das mulheres ao longo dos anos. No entanto, diante do apavorante cenário de feminicídios no Brasil, como foram os casos das mortes de Simone Maria Vital Ferreira, 39 anos, e de Luciene Rosa Teixeira, 38 anos, ocorridas em Caratinga, nos primeiros meses deste ano, faz-se necessário abordar este assunto. Em uma sociedade marcada pela persistência de desigualdades de gênero, a violência contra a mulher continua a ser um problema alarmante e estrutural no Brasil. O feminicídio, uma das formas mais cruéis de violência, reflete não apenas o ódio direcionado às mulheres, mas também as complexas interações entre fatores sociais, culturais e econômicos que sustentam esse ciclo de agressão. Para compreender as raízes e os desafios da luta contra o feminicídio, conversamos com Erika Chioca Furlan, doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp e especialista em direito penal e gênero. Com uma trajetória que inclui a atuação como advogada criminalista e ex-delegada de polícia do estado de São Paulo, Erika traz uma visão crítica sobre as políticas públicas, o impacto das desigualdades sociais e as possíveis soluções para reduzir os números assustadores de feminicídios no país.
Em uma entrevista profunda e reveladora, ela compartilha suas análises sobre as estatísticas, o papel das redes de proteção e as perspectivas para um futuro onde a violência contra a mulher seja erradicada. Em um momento em que celebramos as conquistas das mulheres, especialmente no Dia Internacional da Mulher, é essencial refletir também sobre os desafios persistentes que ainda enfrentamos, principalmente no que se refere à violência de gênero. A conversa com Erika Chioca Furlan se torna, assim, uma oportunidade para repensarmos o papel de todos na luta pela erradicação da violência contra a mulher e pela construção de um futuro mais seguro e igualitário.

Qual é a taxa de feminicídios no Brasil nos últimos anos?
Considerando os dados apresentados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, no ano de 2024, 1.467 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil. Isso significa um aumento de 0,8% comparado ao ano de 2023.
Vale ressaltar que em termos de tentativa de feminicídio os números também são alarmantes, tendo em vista que foram registrados 2.797 casos, o que corresponde a um aumento de 7,1% em relação ao ano anterior.

Quais são os estados brasileiros com maior incidência de feminicídios?
Em números absolutos, Minas Gerais e São Paulo são os Estados com o maior número de casos, sendo 183 e 221, respectivamente. Porém, considerando a taxa por 100 mil mulheres habitantes, os Estados com maior número de feminicídios são Mato Grosso e Rondônia, sendo uma taxa de 2,5 e 2,6, respectivamente.

Qual é a faixa etária mais afetada pelos feminicídios no Brasil?
De acordo com a pesquisa anual, 71,1% das mulheres mortas em 2024 tinham entre 18 e 44 anos, e a faixa etária que concentra mais mortes é a de 18 a 24 anos, com 16,7% dos casos registrados.

Como as desigualdades sociais influenciam as taxas de feminicídios no país?
Percebe-se que o feminicídio atinge todos os estratos sociais, não há privilégios nesse quesito, podendo ser vítima mulheres graduadas, pós-graduadas ou com baixa escolaridade. Isso porque a causa do feminicídio está no agressor e não na vítima.
Porém, é comum ocorrerem maiores índices de feminicídio entre mulheres mais vulneráveis, tendo em vista muitas vezes a necessidade financeira ou psicológica de se manterem em um relacionamento já sabidamente abusivo.
Também é possível observar que problemas financeiros levam ao maior consumo de álcool, fazendo com que os homens se tornem mais agressivos e as mulheres mais suscetíveis à violência.

Qual o perfil das vítimas de feminicídio no Brasil em termos de classe social, cor/etnia e escolaridade?
Há um fenômeno nacional quando se fala em cor/etnia das vítimas de mortes violentas, sejam homens ou mulheres. Morrem muito mais negras e negros no Brasil.
Nos casos de feminicídio, 68,6% eram mulheres negras, 30,9% eram brancas, 0,2% indígenas e 0,2% amarelas.

Qual é a relação entre feminicídios e violência doméstica no Brasil?
O feminicídio é um tipo de violência doméstica, sendo considerado o tipo mais agressivo de violência, pois dá fim à vida de uma mulher.
Em nosso país, os casos de violência doméstica do tipo agressão (lesão corporal) tiveram um aumento de 9,8% em relação a 2023, sendo um total de mais de 258 mil casos registrados.
Portanto, o feminicídio está intimamente ligado aos casos de violência doméstica, uma vez que é considerado o seu tipo mais grave.

 

Há uma tendência de aumento ou diminuição dos casos de feminicídio no Brasil ao longo dos anos?
Conforme o gráfico abaixo, extraído da publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – Feminicídios em 2023, a tendência foi de aumento de feminicídio, pois o feminicídio passou a existir no Código Penal como um crime qualificado em 2015, sendo aplicado nas tipificações a partir de então.
Assim, os índices de homicídio de mulheres foram caindo na mesma medida que os índices de feminicídio foram aumentando.

Qual o impacto das políticas públicas, como a Lei Maria da Penha, na redução dos feminicídios?
As políticas públicas, especialmente a LMP, dão voz à vítima. Isso significa que a mulher, que está em um relacionamento violento, entre lesões ou ameaças, tem um pouco mais de coragem de procurar o apoio das redes de proteção (casas da mulher, delegacias especializadas de atendimento à mulher, requerer medidas protetivas, etc).
Quando a mulher está segura quanto ao apoio que receberá dos equipamentos de Estado, ela tende a denunciar a violência.
Desse modo, entendo que as diferentes esferas de poder, Municípios, Estados e União devem trabalhar juntos.
Por exemplo, o município cuidando do acolhimento local, setorizado, permitindo que a mulher vítima procure ajuda em escolas municipais, em postos de saúde, locais já frequentados pelas mulheres e que não causam alarde, pois ver uma mulher entrando numa escola não causa o mesmo impacto de ver uma mulher entrando em uma delegacia especializada. Em sequência, o Estado com o poder judiciário e outras instituições garantindo direitos. E a União auxiliando em inteligência e financiamento.
Acredito que esse seria um caminho para dar maior segurança à mulher em situação de violência começar a buscar ajuda.

Como a pandemia de COVID-19 influenciou os casos de feminicídio no Brasil?
Veja. Segundo a pesquisa do FBSP, 64,3% das mulheres vítimas de feminicídio foram mortas dentro da própria residência, o que é muito grave, pois a casa, o lar, é para ser um local de acolhimento, afeto e relaxamento.
Quando o isolamento em razão da pandemia de Covid-19 foi instalado, as mulheres passaram a conviver obrigatoriamente com seus agressores. Assim, facilitando a atuação violenta de seus parceiros.
Porém, quem tem o ímpeto assassino vai agir com ou sem isolamento, daí os índices terem uma certa equivalência com os outros anos.

Quais são os impactos da vulnerabilidade econômica das mulheres no aumento da violência doméstica e como políticas públicas podem ajudar a mitigar esse fator?
A mulher em situação de vulnerabilidade econômica muitas vezes se submete ao relacionamento violento por necessidade. Em muitos casos isso ainda acontece. Programas como incentivo à contratação de mulheres sobreviventes de violência doméstica, aluguéis solidários, casas compartilhadas, apoio financeiro para um recomeço são ações já aplicadas em alguns Estados que servem de empurrão para as mulheres saírem do convívio com seus agressores.
Mas vou além. Essa mulher que precisa recorrer a esses programas, aliás, todas as mulheres que foram vítimas, precisam fortemente de apoio psicológico, pois é muito difícil romper com as amarras psicológicas geradas por um relacionamento violento.
O apoio psicológico é imprescindível a toda mulher em situação de violência.

De que maneira a mídia e as redes sociais podem ser usadas para aumentar a conscientização sobre o feminicídio e mudar comportamentos culturais que perpetuam a violência contra a mulher?
A mídia e redes sociais são uma ferramenta útil para levar informação, desde que a informação seja confiável. É ótimo poder compartilhar mensagens de programas de sucesso promovidos em prol das mulheres sobreviventes de violência.
Mas tudo tem um outro lado.
É também nas redes sociais que correm sem qualquer controle mensagens de ódio contra as mulheres, discursos de ódio ao gênero. Tudo isso aliado à muita desinformação sobre o que é gênero.
Portanto, o que pode beneficiar, também tem atrapalhado, na medida em que não há um controle ou um filtro a essas mensagens de ódio às mulheres. O feminicídio é um crime de ódio à mulher.

Por mais que haja campanhas de orientação, por que crescem os casos de feminicídio e à violência de gênero?
Porque é muito difícil saber quando o ódio vai atingir o seu ápice. É muito difícil saber qual é o gatilho que dispara no agressor o ímpeto de morte.
Se fosse possível descobrir esse momento, todos os feminicídios seriam evitados.
Portanto, acredito que em casos já identificados de violências como lesões corporais, ameaças e perseguições, além das medidas protetivas, deva haver um acompanhamento psicológico do agressor, para que ele reconheça em si momentos de fúria, evitando, assim, explosões de ódio.
Muito se pensa sobre apoio e atenção à mulher, o que é certo. Por vezes cobra-se da mulher um olhar mais atento para evitar a violência, mas me pergunto quando o homem também será o objetivo principal de determinado programa contra a violência. Talvez esse possa ser um caminho.

 

 

OBS: todas as respostas tomam como referência o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, disponível em (https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf), bem como da publicação do mesmo órgão intitulada Feminicídios em 2023, disponível em (https://publicacoes.forumseguranca.org.br/server/api/core/bitstreams/eca3a94f-2981-488c-af29-572a73c8a9bf/content)

Erika Chioca Furlan, doutoranda em Ciências Sociais na linha de estudos de gênero da Unicamp, mestre e bacharel em direito, advogada criminalista e ex-delegada de Polícia do Estado de São Paulo. A entrevistada nos foi indicada pela pesquisadora Natália Corazza, que tem trabalhos junto ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, que foi criado em 1993 com o objetivo de produzir e divulgar conhecimento os estudos de gênero, considerando a articulação dessa categoria a outras diferenças sociais – raça/etnia, nacionalidade, classe, geração e sexualidade. O site é www.pagu.unicamp.br/
Patrícia Galvão – Pagu
O nome do Instituto, e também da Agência, é uma homenagem à jornalista, escritora, ativista política e cultural Patrícia Rehder Galvão, a Pagu (1910-1962), que defendia que as mulheres deveriam ter um papel mais ativo na esfera pública. Aos 15 anos, iniciou sua carreira jornalística escrevendo para o Brás Jornal, na capital paulista, tendo posteriormente colaborado também com os jornais Diário de Notícias, Correio da Manhã, Vanguarda Socialista, Diário de S.Paulo e A Tribuna, entre outros. Em seus textos, Patrícia Galvão criticava os valores conservadores da sociedade, defendendo, sobretudo, a emancipação das mulheres. Patrícia Galvão é também considerada a primeira presa política brasileira, após participar de uma greve de estivadores em 1931, quando era militante do Partido Comunista (PCB) ao lado do escritor modernista Oswald de Andrade, com quem era casada na época. Apesar de sua morte precoce, aos 52 anos, em decorrência de um câncer, Pagu deixa um legado histórico para a luta feminista no Brasil e no mundo.

O feminicídio, uma das formas mais cruéis de violência, reflete não apenas o ódio direcionado às mulheres, mas também as complexas interações entre fatores sociais, culturais e econômicos que sustentam esse ciclo de agressão (Imagem ilustrativa/ Foto: Adobe Stock)