Artigo

A NEGAÇÃO E A MIOPIA

*Eugênio Maria Gomes

Como um contumaz leitor, enquanto me atualizo com as notícias da semana, automaticamente vou construindo minha crítica interior sobre o que estou lendo, mas ela é sempre amenizada pelo meu lado escritor, pois sei que quem escreve coloca no papel aquilo que lhe vai na alma, o que, necessariamente, não é uma radiografia fria da realidade, pois costuma estar impregnada pela forma com que o autor enxerga a vida e de como compreende a si mesmo.

Tanto quanto os textos, chama-me a atenção os comentários dos leitores.

Quando lemos algo, adquirimos o direito de tomar o texto para nós, passamos a nos apropriar dele e a interpretá-lo com base em nossas crenças, em nossos desejos, inclusive os mais escondidos. Assim que corremos os olhos no que foi escrito, deixa de importar o que o escritor quis dizer e passa a importar tão somente aquilo que eu consigo entender, aquilo que eu quero que esteja ali, no texto à minha frente.

Quando algum colunista escreve, por exemplo, sobre a importância de se esclarecer, com a maior precisão possível, as nuances das mortes de Mariele Franco – brutalmente assassinada no Rio de Janeiro -, do garoto Miguel – que despencou do 9º andar do prédio na grande Recife -, do João Alberto – espancado até a morte em Porto Alegre – ;das meninas Emily e Rebecca, mortas na porta de casa durante um tiroteio, em Duque de Caxias; ou do Cabo Derinaldo Cardoso dos Santos, morto enquanto cumpria o seu dever, em um mercado na Baixada Fluminense; parecem-nos cruéis os comentários do tipo “Esse assunto já deu” e “Essa mídia não tem outro assunto?”, mas é possível, ainda que não se os aceite, pelo menos que se entenda tais comentários. É que estes assuntos, definitivamente, não fazem a menor diferença para quem faz essa espécie de comentário.

Muitas pessoas, de fato, não estão interessadas nesses temas, porque são assuntos que não fazem parte de suas preocupações. Interessante que, logo após escreverem tais comentários, eles costumam escrever coisas do tipo “O fulano fez isso e ninguém falou nada”, “Quando morreu sicrano, ficou todo mundo calado”, naquele viés que todo mundo já conhece muito bem: para se livrar da responsabilidade de discutir algo que incomoda, basta desviar o foco e contrapor o tema com outro que mais lhe seja do agrado.

Tem dois temas, no entanto, que estão deixando alguns leitores sem terem muito o que comentar, de tão esquizofrênicas que estão ficando essas questões: a incapacidade de Donald Trump de entender o “Perdeu cowboy”, e o reconhecimento de que o coronavírus não é só uma “gripezinha”.

A posição adotada pelo atual presidente norte-americano, de querer permanecer no poder a qualquer custo, em uma das mais consolidadas democracias representativas do mundo atual, iniciou-se causando certo pânico, encaminhou-se para a posição do ridículo e, agora, encontra-se na seara das piadas. Sua imagem, de homem mais importante da terra, transformou-se na de um menino chorão, que depois de chupar o seu pirulito, não que deixar que o seu coleguinha também saboreie um. Tipo “Esse pirulito é meu” e “Não saio, não saio, não saio”.

Já a pretensa despreocupação com a pandemia, a tentativa de minimizar os seus riscos a todo custo, criou uma onda de negacionismo sem precedentes em algumas partes do mundo, mais perceptíveis nos E.U.A e aqui, no Brasil, levando à morte milhares de pessoas. No começo, as mortes estavam acontecendo longe, na Europa, na Ásia. “O vírus não gosta de calor, no nosso clima ele não sobreviverá”, diziam muitos. Depois, ele veio para América do Norte e depois chegou no Brasil. “Isso é vírus de rico, só anda de avião”, “Pobre não pega isso não”, “Brasileiro precisa ser estudado, pois não pega esse vírus não”, foram apenas algumas das nossas frases a demonstrar a não aceitação do que estava à nossa porta.

Teve quem dissesse que o vírus não cruzaria as montanhas de Minas, como se o covid-19 conhecesse ou fosse limitado por fronteiras. Pois bem, ele chegou, e as mortes começaram a ficar cada vez mais próximas de nós. Saíram das ruas e vieram para as nossas casas. Sentimos, na pele, que não era apenas uma gripezinha. Até quem sempre defendeu que “é assim mesmo, o efeito rebanho vai selecionar os mais fortes”, ou então “um dia todos nós vamos morrer”, anda mudando de ideia, porque até pode morrer muita gente, desde que não seja “nenhum dos nossos”, ou melhor, “nenhum dos deles”!

Ainda há os que dizem “Aqui em casa os meninos pegaram e não tiveram nada” e “Esse vírus chegou e vai ficar e não vamos parar a vida por conta disso”. É sabido que a maioria das pessoas não sente qualquer efeito mais grave do vírus, mas são justamente estas pessoas que colaboram para matar os avós, os pais, os tios, o parente ou amigo que possui alguma comorbidade. Insisto: a sua liberdade termina exatamente onde começa a minha. Você pode fazer o que quiser da sua vida, mas não da minha vida!

Da minha vida eu cuido e quero essa peste de vírus bem longe de mim e dos meus! Mas não posso deixar de perceber, que em poucos momentos da História, algumas pessoas foram tão hábeis em deturpar a realidade, moldá-la aos seus próprios interesses, ou analisá-la através de seus olhares míopes e suas visões curtas.

Porque eu sou do tamanho do que vejo, e não, do tamanho da minha altura…”, disse Fernando Pessoa, no início do século passado. Nada mais atual. Talvez o mais universal poeta português estivesse antevendo o comportamento de muitos, um século a frente…

 

  • Eugênio Maria Gomes é escritor e funcionário da Funec.
Diário de Manhuaçu

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