Professor doutor Mateus Dalmáz avalia como serão as relações do Brasil com os Estados Unidos com a volta do magnata à Casa Branca
Por José Horta
DA REDAÇÃO – Em novembro de 2024, o republicano Donald Trump venceu a democrata Kamala Harris. A vitória foi formalizada no dia 17 de dezembro de 2024, dia em que os delegados se reuniram nos Estados Unidos como parte do processo constitucional para eleger oficialmente um presidente, conhecido como Colégio Eleitoral. Eram necessários ao menos 270 votos dos 538 delegados para ser eleito presidente. Trump ganhou 312 na eleição de novembro contra 226 da vice-presidente Kamala Harris. Na última segunda-feira (20), o magnata reassumiu o governo dos Estados Unidos prometendo muitas medidas e cumprindo algumas delas no primeiro dia de mandato. Para termos uma noção de como será a relação do governo brasileiro com governo Trump, o DIÁRIO entrevistou o professor doutor Mateus Dalmáz.
REELEIÇÃO
Donald Trump não poderá concorrer à reeleição em 2028. Diferentemente do Brasil, as regras são diferentes nos Estados Unidos. O presidente pode disputar a reeleição, mas depois de dois mandatos fica vetado de tentar retornar ao cargo – mesmo anos mais tarde. Por isso, ao tomar posse, Trump deu início a seu segundo, e último, mandato na Presidência. A norma, estabelecida na Vigésima Segunda Emenda da Constituição americana, diz ainda que pessoas que tenham atuado no cargo da Presidência por mais de dois anos também terão o tempo contado como um mandato, ou seja, poderão ser eleitas apenas uma vez e atingirão o limite de dois mandatos.
Com esta vitória, Trump repetiu o feito de Glover Cleveland, vigésimo segundo presidente norte-americano, governando de 1885 a 1889. Foi o primeiro presidente democrata eleito após a Guerra Civil e, até então, o único que exerceu o cargo por dois mandatos não consecutivos. O seu segundo mandato decorreu entre 1893 e 1897.
Ainda sobre esta norma, segundo informações do Centro Nacional da Constituição dos EUA, a emenda que determinou essa regra foi ratificada em 1951, sendo impulsionada pelos republicanos após a controversa sucessão de quatro mandatos do democrata Franklin Roosevelt na Casa Branca, entre 1933 e 1945, quando faleceu.
“CIDADÃO TRUMP”
Fato é que não tem como ficar incólume diante das falas de Donald Trump. Dentre tantos adjetivos, seus apoiadores o consideram um “visionário”, “apoiador incondicional da liberdade de expressão” e “um homem que ficou milionário devido sua astúcia para os negócios”. Já seus detratores, o classificam como um “bravateiro”, “alguém que apoia a liberdade de expressão desde que seja ao seu favor”, além de ser um “empresário inescrupuloso”.
Tomo ‘licença poética’ e faço uma comparação entre Donald Trump e o personagem Charles Foster Kane do filme “Cidadão Kane” (1941) dirigido por Orson Welles. Inclusive, conforme matéria do jornal Boston Globe, “Coming to a theater near you: ‘Citizen Trump” (Chegando a um teatro perto de você: ‘Cidadão Trump’), publicada em 28 de julho de 2026, o texto informava quais os filmes preferidos dos últimos presidentes estadunidenses e dizia que este é o filme é o preferido de Donald Trump. Sendo assim, faço essa comparação, pois ambos compartilham temas centrais relacionados ao poder, à mídia e ao impacto pessoal na sociedade. Analisei alguns pontos de semelhança e diferença:
- Ascensão ao poder e ambição
Em “Cidadão Kane”, o protagonista, Charles Foster Kane, é um homem que começa sua vida em circunstâncias humildes e ascende ao topo da sociedade americana. Ele faz fortuna e se torna um magnata da mídia, dominando grandes jornais e usando o poder da mídia para moldar a opinião pública. Kane é movido pela ambição, e sua busca pelo controle e influência o leva a perder o que ele realmente valorizava (como relacionamentos pessoais).
Donald Trump, embora nascido em uma família rica, também tem uma trajetória de grande ascensão, especialmente no mundo dos negócios e da mídia. Sua candidatura à presidência dos Estados Unidos em 2016, com uma campanha altamente midiática, espelhou a maneira como ele utilizou sua visibilidade e presença na mídia para consolidar sua posição de poder. Ele também parece ter uma ambição incessante de expandir seu império e sua influência.
- A mídia como instrumento de poder
Tanto Kane quanto Trump possuem uma relação estreita com a mídia. No filme, Kane é proprietário de vários jornais, utilizando-os para criar e moldar uma narrativa que favoreça seus próprios interesses. Sua luta pelo controle da mídia é um reflexo de como ele tenta manipular a opinião pública e a política.
Trump, por sua vez, também se utiliza da mídia de maneira estratégica. Durante sua campanha presidencial, ele aproveitou as redes sociais e a cobertura da mídia tradicional para amplificar sua imagem. Sua habilidade de dominar as notícias e sua relação muitas vezes conflituosa com jornalistas refletem o uso da mídia como uma ferramenta de poder, à semelhança de Kane, embora de uma maneira mais moderna.
- Isolamento pessoal e fracasso em relacionamentos
Ambos os personagens experimentam um isolamento crescente à medida que sua busca por poder se intensifica. Kane acaba alienado de seus amigos e familiares, e sua única busca parece ser por mais controle e sucesso. O famoso “Rosebud”, que simboliza a perda da inocência e da felicidade de sua infância, destaca esse vazio existencial.
Trump, apesar de ter uma família e uma rede de aliados, também é frequentemente retratado como alguém que, por vezes, prioriza sua ambição em detrimento de relacionamentos pessoais. Embora ele tenha uma família política e empresarial forte, muitos críticos apontam para sua falta de conexões pessoais profundas e sua tendência a cortar laços com aqueles que não atendem a suas expectativas.
- Efeito sobre a sociedade
Kane exerce um grande impacto na sociedade através de seus jornais, moldando a opinião pública e até interferindo em políticas. Sua figura é um reflexo do poder que uma única pessoa pode ter ao controlar as narrativas midiáticas e influenciar a política e a cultura.
Trump também teve um impacto profundo na sociedade americana, especialmente no que diz respeito à polarização política, o uso das redes sociais e a transformação da política americana em uma arena de combate constante, onde a comunicação se torna mais uma ferramenta de marcação de território do que de diálogo construtivo.
- Final solitário e reflexão
O final de “Cidadão Kane” é trágico e solitário, com Kane morrendo em sua mansão, imerso em sua própria fortuna, mas sem a satisfação ou a conexão emocional que ele desejava. O “Rosebud”, que representa sua perda de inocência e o que ele realmente valorizava, é uma metáfora para o preço de sua busca implacável por poder.
Trump, por sua vez, também pode ser visto como uma figura que constantemente se encontra em confronto com as consequências de suas ações e decisões. Sua presidência e os eventos subsequentes, como a tentativa de contestar os resultados das eleições de 2020, indicam uma jornada em que o poder e o controle são constantemente reafirmados, mas com uma crescente desconexão do que ele e outros podem realmente considerar como “sucesso” ou “realização”.
Enfim, enquanto “Cidadão Kane” é uma obra fictícia, ela captura muitos dos aspectos que podem ser observados na trajetória de figuras poderosas, como Donald Trump. Ambos compartilham temas de ascensão ao poder, uso da mídia para influência e uma busca incessante que, no final, deixa um vazio pessoal. No entanto, enquanto Kane é um personagem de ficção com uma narrativa trágica, Trump é uma figura real que continua a impactar o mundo de formas muito concretas.
Sobre o impacto de Trump de forma concreta, ele tomou medidas polêmicas em primeiros atos, como perdão aos presos do 6 de janeiro de 2021, emergência nacional na fronteira com o México, retirada do Acordo de Paris, retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e as tais ordens executivas, que cabe uma explicação, pois elas foram assinadas por Trump em três etapas: no Capitólio, logo após a posse; em um ginásio com a presença de apoiadores; e no Salão Oval da Casa Branca.
O presidente não pode criar novas leis por meio de uma ordem executiva além dos poderes que já são atribuídos a ele pela Constituição ou pelo Congresso. Quando uma ordem executiva determina que agências tomem medidas, as regras criadas por essas agências devem seguir a Lei de Procedimento Administrativo dos Estados Unidos, que exige consulta pública e proíbe decisões consideradas “arbitrárias ou sem fundamento”. Além disso, essas regras não podem violar direitos garantidos pela Constituição, como o devido processo legal e a igualdade perante a lei, nem contrariar leis aprovadas pelo Congresso.
CONDENAÇÃO
Trump é o primeiro presidente estadunidense com uma condenação na justiça. Ele foi condenado em maio de 2024 por comprar o silêncio de Stormy Daniels, ex-atriz pornô, por US$ 130 mil. O pagamento foi feito para esconder uma relação extraconjugal que poderia prejudicá-lo nas eleições de 2016. Naquele ano, o republicano venceu a candidata democrata Hillary Clinton.
Apesar da condenação, o presidente não foi (e não será) preso. Não houve qualquer multa, serviço comunitário e nem punição. A Suprema Corte determinou uma “dispensa incondicional”, o que significa que nada ocorrerá contra o presidente.
Sobre a condenação, Trump disse: “Um juiz totalmente conflituoso que está fazendo o trabalho para o Partido Democrata porque todos os outros casos falharam […]. Eu não fiz absolutamente nada de errado. Essa é uma caça às bruxas política de Biden […] Não havia caso algum. Ele criou um caso do nada porque queria que meu oponente político ganhasse”.
DIPLOMACIA BRASIL – ESTADOS UNIDOS
A relação diplomática entre Brasil e Estados Unidos passa de dois séculos. Estados Unidos foi o primeiro país a reconhecer a Independência do Brasil, em 1824. A Doutrina Monroe, criada pelo presidente James Monroe em 1823, muito contribuiu para isso. Sintetizada na frase “A América para os americanos”, defendia o direito à soberania das nações e era contrária a qualquer intervenção europeia no continente americano. No entanto, por trás dessa doutrina de não intervenção e de não colonização, havia o interesse em diminuir a influência inglesa e em obter, com o reconhecimento, vantagens comerciais para os Estados Unidos.
E uma frase é emblemática, e símbolo do viralatismo nacional, nesta relação: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. A frase afirmativa é do embaixador brasileiro em Washington entre 1964 e 1965, Juracy Magalhães, e foi usada por décadas para ironizar os “entreguistas” da direita e da extrema-direita no Brasil. E ainda é usada até hoje pela esquerda brasileira com o mesmo sentido irônico. Vale lembrar que à época, os EUA patrocinavam derrubadas de governos pela América Latina, asfixiando Cuba via bloqueio econômico, a frase carregava um pesado simbolismo, principalmente aos que se opunham ao governo militar.
Nos anos 2019 e 2020, Jair Bolsonaro presidia o Brasil e Trump governava os Estados Unidos. Neste período houve um reposicionamento em favor de um alinhamento mais estreito com os Estados Unidos, especialmente em termos de política externa, com foco no combate ao socialismo. Mesmo com a aproximação ideológica, isso não se traduziu em benefícios para o Brasil. “A relação Trump-Bolsonaro nada trouxe para o Brasil, senão reforçar a subserviência. Hoje, até os militares foram capturados pela lógica do mercado. Já não são mais nacionalistas, desenvolvimentistas como foram no passado. Não duvidaria que, num sincrônico governo Trump-Bolsonaro, até uma base militar americana poderia vir a ser, finalmente, implantada no Brasil. Afinal, o entreguismo, a síndrome de sabujo, é enorme em Bolsonaro e sua trupe”, avaliou o professor doutor Lier Pires Ferreira na edição de 9 de novembro de 2024 do DIÁRIO. Dono de um extenso currículo, ele é mestre em Relações Internacionais pela PUC/RJ.
COMÉRCIO ENTRE OS DOIS PAÍSES
Brasil e Estados Unidos sempre tiveram fortes laços comerciais. Num breve relato, os dois países estabeleceram relações diplomáticas em 1824, logo após a independência do Brasil. Durante o século XIX, o comércio entre os dois países foi focado principalmente na exportação de produtos brasileiros, como açúcar, café, borracha e, mais tarde, minérios, para os Estados Unidos, em troca de manufaturados e tecnologia. O Brasil, por sua vez, sempre teve um grande interesse em atrair investimentos e estabelecer parcerias comerciais com os EUA.
No início do século XX, os Estados Unidos consolidaram-se como um dos maiores parceiros comerciais do Brasil. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) trouxeram novos desafios e também oportunidades. Durante a Segunda Guerra, os dois países se aproximaram politicamente, com o Brasil entrando ao lado dos aliados e recebendo apoio militar e econômico dos EUA, o que fortaleceu os laços entre as duas nações.
Após a guerra, com a Guerra Fria em curso, o Brasil seguiu uma política externa pragmática, alternando entre alinhamentos com os Estados Unidos e uma busca por maior autonomia, especialmente no período do regime militar (1964-1985), quando o Brasil e os EUA mantiveram uma estreita colaboração.
Dando um ‘salto na história’, a China passou a ser o maior parceiro comercial do Brasil em 2009. A relação comercial entre os dois países teve início na década de 1970, mas só se tornou significativa a partir dos anos 2000, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC). A China é considerada um parceiro estratégico do Brasil desde 1993, quando os dois países assinaram um acordo.
Voltando para o presente, quando concedeu entrevista coletiva no dia de sua posse, Donald Trump foi perguntado pela correspondente da GloboNews em Washington, Raquel Krähenbühl, sobre essa relação, a resposta de Trump chamou a atenção entre os brasileiros. A declaração foi a de que o Brasil e a América Latina precisam “mais dos EUA do que os EUA precisam deles”. E que os Estados Unidos não precisariam do Brasil e da América Latina. A íntegra da frase é: “A relação [dos EUA com Brasil e América Latina] é excelente. Eles precisam de nós, muito mais do que nós precisamos deles. Não precisamos deles. Eles precisam de nós. Todos precisam de nós”.
Os ‘trumpistas brasileiros’ aplaudiram e viram autenticidade. Trump cravou em suas campanhas “Make America Great Again” (Torne a América Grande Novamente) e reviveu o America First (Estados Unidos em primeiro lugar). Isso mostra sua política protecionista. Mas os avessos à Donald Trump falam que a (extrema) direita brasileira faz genuflexão para ele e carrega um ‘amor platônico’, já que o presidente estadunidense não corresponde a paixão desse grupo.
A situação chegou a um ponto que o senador piauiense Ciro Nogueira, que já ocupou o cargo de ministro da Casa Civil no governo de Jair Bolsonaro e atualmente preside o Partido Progressista (PP), manifestou sua insatisfação em relação a declaração de Donald Trump e ao comportamento dos ‘trumpistas brasileiros’. “Não pode ser todo o tempo reverenciado. O Brasil é bem maior do que a reles resposta que ele deu à jornalista Raquel Krähenbühl desprezando o Brasil. Quanto mais servis parecermos menos respeitados seremos”, escreveu o senador em uma rede social.
Por sua vez, Lula, presidente do Brasil, mesmo não estando na posse de Trump, foi diplomático e escreveu em uma rede social: “Em nome do governo brasileiro, cumprimento o presidente Donald Trump pela sua posse. As relações entre o Brasil e os EUA são marcadas por uma trajetória de cooperação, fundamentada no respeito mútuo e em uma amizade histórica”.
O certo é que conforme dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), em 2024, o fluxo comercial entre Brasil e Estados Unidos chegou a cerca de US$ 81 bilhões. Os números indicam equilíbrio na relação comercial com os Estados Unidos. Em 2024, foram registrados US$ 40,33 bilhões em exportações brasileiras para os EUA, novo recorde; US$ 40,58 bilhões em importações brasileiras dos EUA.
Neste comércio se destacaram produtos básicos ou semimanufaturados, como petróleo, aço, ferro, café, carnes, mas também produtos de maior valor agregado, como suco de laranja e aviões.
Só para constar, de acordo com matéria do site Trading Economics, os maiores parceiros comerciais do Brasil são: China (27% do total de exportações e 22% do total de importações), Estados Unidos (11% das exportações e 19% das importações) e Argentina (5% das exportações e 5% das importações). Outros incluem: Países Baixos, Canadá, Japão, Alemanha e Espanha. Valores atuais, dados históricos, previsões, estatísticas, gráficos e calendário econômico
A ENTREVISTA
Para entender como serão as relações entre Brasil e Estados Unidos, o DIÁRIO entrevistou o professor doutor Mateus Dalmáz. Ele já colaborou com o jornal na edição de 25 de fevereiro de 2023, quando falou sobre um ano do conflito Rússia x Ucrânia. Dalmáz explicou que “é grande a chance de haver um esfriamento nas relações Brasil-EUA. Porque o governo Trump prioriza a rivalidade com a China ao invés da cooperação regional; opta por decisões unilaterais ao invés de multilaterais; introduz teor ideológico em sua política externa ao invés do pragmatismo; dissemina fake news e patrocina atos autoritários ao invés de respeitar a liturgia democrática; reaquece a xenofobia ao invés do respeito à diversidade”.
Em 2020, Donald Trump perdeu a eleição para o democrata Joe Biden. William Shakespeare certa vez escreveu: “Algumas quedas servem para que nos levantemos mais felizes”. Torçamos que Donald Trump esteja feliz e faça com que o mundo se sinta feliz independentemente da ideologia, afinal, ‘política é arte de fazer amigos’. Mas se houver o contrário, o bardo inglês tem uma frase consoladora em MacBeth: “Aconteça o que acontecer, o tempo e as horas sempre chegam ao fim, mesmo do dia mais duro dentre todos os dias”.
Como a retomada da presidência de Donald Trump impacta a política externa dos Estados Unidos em relação ao Brasil?
A prioridade da política externa de Trump passa a ser a xenofobia e a guerra comercial e tecnológica com a China, o que significa desengajamento militar dos EUA em conflitos como o da Ucrânia e da Faixa de Gaza (para não comprometer o orçamento), o descompromisso com fóruns multilaterais, como OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte), ONU (Organização das Nações Unidas), Acordo de Paris e COPS (para garantir tomada de decisões unilaterais), o desestímulo à integração regional (para implementar protecionismo econômico e medidas xenofóbicas de imigração). Ao mesmo tempo, Trump reintroduz um elemento ideológico à política externa, que é o fortalecimento da extrema direita e dos valores reacionários e o desprezo aos demais campos políticos e valores progressistas. Sendo assim, o Brasil passa a ser visto como sendo parte de uma agenda secundária da política externa estadunidense, um país desimportante por oferecer diálogo, cooperação e integração a um EUA voltados para o unilateralismo, a autossuficiência e o nacionalismo.
Como o Brasil será impactado pelas políticas protecionistas dos EUA em relação à indústria e ao comércio internacional?
A cruzada ideológica anti-valores progressistas e as medidas econômicas protecionistas empreendidas por Trump podem impactar no encarecimento dos produtos brasileiros no mercado estadunidense. Por mais que haja fortes e históricos vínculos comerciais entre Brasil e EUA e que a política externa de Lula seja a de cooperação econômica com os EUA, o ultra nacionalismo de Trump tende a intervir negativamente no volume de trocas bilaterais, na medida em que o consumidor norte-americano se deparar com preços inflacionados dos produtos importados, afetando tanto o setor agrícola quanto industrial do Brasil. Tal aspecto também causa incômodos no plano doméstico dos EUA, uma vez que o governo Trump terá que lidar com a pressão de setores significativos da sociedade estadunidense por uma normalização das relações comerciais com tradicionais parceiros dos EUA, como o Brasil, e por políticas menos inflacionárias.
Qual o impacto da política ambiental de Trump para as relações Brasil-Estados Unidos, especialmente em relação à Amazônia?
Certamente haverá mudanças. Os governos de Barack Obama e de Joe Biden incluíram a agenda ambiental em suas políticas externas, na tentativa de fazer dos EUA uma liderança ocidental no encaminhamento de medidas de proteção ambiental. Donald Trump, por sua vez, tratou de desengajar os EUA das discussões sobre o clima, como forma de fortalecer setores produtivos estadunidenses desinteressados em comprometer orçamentos com a preservação ambiental. A retirada dos EUA do Acordo de Paris, durante o primeiro governo Trump, foi exemplar em relação a isso. O Brasil, por outro lado, é um dos atores internacionais mais comprometidos com a causa ambiental e sediará a COP 30 em Belém do Pará, em dezembro de 2025. A intenção brasileira é promover uma rede de cooperação multilateral pela preservação ambiental como caminho para garantir parcerias em âmbito ecológico e também econômico, político, social, cultural e militar. Tais parcerias fazem parte da estratégia de defesa do Brasil tanto no que diz respeito à Amazônia quanto no que se refere à costa atlântica. Assim, o Brasil não terá nos EUA uma parceria para esses fins. Pelo contrário, serão os EUA os incentivadores de desengajamentos em torno de questões ambientais.
Como a presidência de Trump pode afetar a parceria entre os dois países no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado?
O Brasil mantém uma rede de cooperação com vizinhos latino-americanos para promover ações de combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. As relações multilaterais são tratadas como estratégicas pelo ministério da Defesa do Brasil, para quem a América do Sul é vista como sendo marcada por uma rede de interdependência ambiental, econômica, cultural, política, social e militar. Os EUA fazem parte dessa rede de interdependência e com o governo Trump o Brasil perde uma parceria importante, tanto para definir quanto para implementar ações de segurança regional e de defesa do território nacional. O afastamento dos EUA em relação à rede de cooperação latino-americana pode abrir ainda mais espaço para os laços da América Latina com a China, o que seria um efeito de médio a longo prazo indesejado por Trump.
Qual será a posição de Trump em relação à presença militar dos EUA na América Latina e ao relacionamento com o Brasil nesse contexto?
A América Latina não é tratada pelo governo Trump como estratégica para os EUA conservarem o status de superpotência mundial. Os vínculos culturais, comerciais, políticos, sociais e militares já são históricos e consolidados. Durante o primeiro mandato de Trump, não houve política de militarização dos EUA na América Latina, nem de ações militares diretas por parte de Washington na região. O retorno de Trump ao governo sugere uma reedição do tratamento militar dado à América Latina anteriormente: manutenção da percepção americana de que a América Latina faz parte do sistema de segurança internacional proposto pelos EUA, o qual atua indiretamente na região, contando com apoio de governos aliados para promover os interesses estadunidenses. A preservação da soberania nacional é um princípio importante da diplomacia brasileira e a política de Trump para a América do Sul tende a não afetar esse princípio. No entanto, a pretensão de Trump de retomar o controle do canal do Panamá, desrespeitando um Estado soberano na América Central, serve de alerta sobre o que o governo Trump é capaz de fazer.
Trump pode tentar reduzir a imigração de brasileiros para os Estados Unidos? E quanto às deportações?
Uma das políticas mais anunciadas de Trump é a de restrições para imigrações aos EUA e de deportações. Sendo assim, os brasileiros receberão o tratamento rigoroso prometido por Trump aos estrangeiros, especialmente aos latino-americanos, que são um dos alvos principais da xenofobia propagandeada pelo partido Republicano. Turbulências nas relações fronteiriças com o México, rigidez nas regras para entrada de estrangeiros e exaltação de sentimentos xenofóbicos fazem parte da conjuntura maior dentro da qual os brasileiros se inserem. O Brasil, por sua vez, advoga pela causa de políticas de imigração que tenham forte conteúdo de direitos humanos e de assessoria a imigrantes, refugiados e apátridas, residindo aqui outra temática que gera divergência entre o governo de Trump e o de Lula.
O Brasil é um país soberano. Donald Trump pode querer interferir no processo de inelegibilidade de Jair Bolsonaro?
É pouco provável que haja interferência dos EUA em decisões do poder judiciário brasileiro. Mesmo quando o primeiro governo de Trump reconheceu a legitimidade de Juan Guaidó para assumir a presidência da Venezuela, não houve intervenção direta de Washington na soberania de Caracas para consagrar o presidente eleito naquela ocasião, que foi Nicolas Maduro. A ação de Trump, no episódio envolvendo Guaidó, foi incentivar os governos reacionários da América Latina a intervir na Venezuela, algo que não ocorreu. Projetando cenários futuros envolvendo o Brasil, pode-se considerar que a aproximação político-partidária entre o trumpismo e o bolsonarismo viabilize uma série de ações para fortalecer o campo político da extrema-direita, incluindo a arquitetura de planos que desrespeitem a liturgia das instituições democráticas. Agressões ao Estado democrático de direito no Brasil, nesse cenário, podem contar com o apoio indireto de Trump, a partir de uma ação de grupos de extrema-direita internos.
Devido à proximidade ideológica com Javier Milei, Trump favorecerá a Argentina em relação a outros países da América Latina em questões de segurança e alinhamento político?
Trump conduz a política externa a partir de preferências políticas e ideológicas. Na América do Sul, o presidente Javier Milei é visto pelo trumpismo como um integrante do campo político da extrema-direita e, como tal, receberá, sim, maior atenção do governo americano (embora a América do Sul em geral e a Argentina em particular não sejam prioridade na política externa de Trump). Não há interesse por parte dos EUA pelo fortalecimento da integração sul-americana, pela cooperação no eixo Sul-Sul e pelo sucesso dos Brics. Igualmente não há interesse por parte de Trump em engajamento em fóruns multilaterais sobre meio-ambiente, direitos humanos e desenvolvimento social. O governo Trump, então, conta com Javier Millei para boicotar ações latino-americanas, particularmente brasileiras, que atuam em prol dessas questões. O governo Lula tem procurado fortalecer o papel do Brasil como liderança hemisférica em temas como direito ambiental, humanitário, social e democrático. Tal estratégia visa credenciar o Brasil como um importante porta-voz do sul global e ator internacional habilitado para participar de debates e decisões sobre segurança internacional.
Qual será o impacto da política de Trump sobre questões de direitos humanos e democracia no Brasil?
O fortalecimento do trumpismo naturalmente incita grupos de extrema-direita no Brasil a praticar ações antidemocráticas, como disseminação de fake news com discursos de ódio aos valores progressistas, negacionismo sobre alterações climáticas, ataques aos demais campos políticos, desconfianças sobre urnas eletrônicas, pedidos por intervenção militar etc. A não aceitação da derrota para Biden e a invasão no Capitólio promovidas pelo trumpismo, há quatro anos, serviu de modelo para os atos autoritários do bolsonarismo no Brasil, há dois anos. Assim, o retorno de Trump à presidência reforça a oposição interna, no Brasil, a tudo o que o governo Lula representa: democracia, coalizão de campos políticos, valores progressistas, política externa pragmática, engajamento em temáticas da agenda global, como direitos humanos, meio-ambiente, desenvolvimento e reforma do conselho de segurança da ONU.
A relação entre os dois países pode ser afetada por posicionamentos divergentes em relação à guerra na Ucrânia e outras crises globais?
O posicionamento do Brasil em relação à guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza foi o de condenar a guerra, criticar negativamente os beligerantes, propor imediato cessar-fogo a partir de mediação multilateral, respeitar a ONU como órgão legítimo para garantir sistema de cooperação. A intenção do Brasil ao não tomar lado nos conflitos e propor caminho alternativo pautado no cooperação foi o de retomar um sistema internacional de paz e segurança para negócios, de modo a captar recursos do hemisfério norte para o sul. Donald Trump dá indícios de que trabalhará pelo cessar-fogo, não por interesses humanitários, e sim, estratégicos, para não comprometer o orçamento com conflitos que se prolongam e para não comprometer a diplomacia com alianças longas, especialmente com europeus. Logo, o fim dos conflitos é um ponto de convergência entre o governo de Lula e de Trump. O pós-conflito, com o Brasil propondo cooperação multilateral e os EUA defendendo o nacionalismo unilateral, no entanto, é um ponto de divergência.
Em suma, o senhor acredita que haverá um esfriamento nas relações entre Brasil e Estados Unidos? A relação diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos será mais alinhada ou mais tensa com a presidência de Trump em 2025?
É grande a chance de haver um esfriamento nas relações Brasil-EUA. E por que? Porque o governo Trump prioriza a rivalidade com a China ao invés da cooperação regional; opta por decisões unilaterais ao invés de multilaterais; introduz teor ideológico em sua política externa ao invés do pragmatismo; dissemina fake news e patrocina atos autoritários ao invés de respeitar a liturgia democrática; reaquece a xenofobia ao invés do respeito à diversidade. A retórica truculenta de Trump é um grande fator de risco para a normalização das relações internacionais no âmbito americano. A possibilidade de manutenção das boas relações entre Washington e Brasília está centrada no pragmatismo da política externa brasileira, que sinalizou desejo de cooperação sem picuinhas ideológicas com os EUA.
Como o senhor avalia a declaração de Trump sobre o Brasil, “precisa mais de nós que nós deles?’
A frase indica que, na agenda da política externa americana, a América Latina e o Brasil não são prioritários. Por mais que existam elos históricos e sólidos entre EUA e América Latina, o governo Trump não está propondo novas políticas de integração. Pelo contrário, Trump está ameaçando a região com taxações sobre os importados caso os países latino-americanos realizem negócios sem uso do dólar. Ou seja, o governo Trump está preocupado com o processo de desdolarização em curso, algo crescente desde que a China passou a ter uma presença mais maciça no comércio internacional. O interesse dos EUA é dissuadir o Brics e os blocos econômicos regionais, como o Mercosul, de utilizar moedas alternativas e, assim, frear o processo de desdolarização.
- Com ficará a relação entre Brasil e Estados Unidos? Só o tempo vai dizer, mas nosso entrevistado aponta alguns caminhos (Getty Imagens)
- Professor doutor Mateus Dalmáz. Ele é coordenador do curso de Relações Internacionais, coordenador do projeto de extensão Relações Internacionais na Sala de Aula -Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – CHSA -Universidade do Vale do Taquari – Univates (Lajeado/RS)
- O retrato oficial de Trump destoa da foto oficial divulgada em 2017, quando o republicano aparecia sorrindo para o primeiro mandato. Desta vez, o presidente está com o semblante fechado, levantando uma das sobrancelhas. Trump fez uma pose parecida em agosto de 2023, quando foi “fichado” pela polícia no âmbito das investigações que apuraram a tentativa do republicano de reverter os resultados das eleições presidenciais de 2020
- Donald Trump afirmou que o clássico filme de 1941 de Orson Welles, “Cidadão Kane”, é seu favorito (Fotos: Michael Reynolds/EPA (à esquerda); AFP (à direita))