Uma mulher jovem entrou pela porta do consultório da Unidade Básica de Saúde. Ela parecia estar cansada, caminhava com os ombros encolhidos e olhar voltado para o chão.
– Boa tarde! Como posso ajudar você hoje, Maria*?
– É que meu nariz tá doendo muito. Tá inchado, doutor.
– Você caiu ou bateu a face em alguma estrutura?
– Não, não bati e nem caí. – Disse baixinho, quase sussurrando.
– Compreendo.
O médico olhou rapidamente para o prontuário de Maria e voltou a atenção novamente para ela.
– Posso examiná-la?
Maria assentiu com a cabeça.
Ele se levantou, calçou as luvas e caminhou até a paciente que retirou sem graça a máscara de proteção. Durante o exame físico, a mulher relatou muitas dores quando o médico tocou sua face. Havia um inchaço perceptível seguido de uma alteração na cor da pele.
– Aparentemente a cartilagem do seu nariz está quebrada, Maria. Não se lembra de nada que pudesse causar essa lesão? Talvez uma queda ou algum tipo de agressão…
– Não, doutor. Não me lembro de nada. – Respondeu com olhos cheios d’água que diziam muito mais que as palavras pronunciadas por sua boca.
O ferimento de Maria era exatamente do tipo que não aparece sem que haja um choque entre a cabeça e uma superfície extremamente rígida, ou que um punho fechado acerte em cheio o rosto de alguém. Maria não era a primeira mulher a chegar daquele jeito na UBS sem nenhuma lembrança do que provocou o machucado. Antes dela, outras disseram ter caído da escada ou tropeçado no tapete.
– Tem mais alguma coisa que você gostaria de me contar?
– Não, só quero um remédio para sarar o meu nariz.
– Vou passar um medicamento para diminuir essa dor. Você fará um exame de imagem para confirmar o diagnóstico, provavelmente passará por uma pequena cirurgia para a correção do nariz. Tudo bem?
– Cirurgia, doutor? – perguntou a mulher enquanto uma lágrima ligeira escapou e trilhou sua pele.
– Sim, a fratura foi muito séria, mas um especialista deverá avaliar a necessidade.
Realizados os devidos protocolos, quando Maria se levantou para ir embora, o médico inclinou levemente seu corpo para a frente e disse:
– Você pode voltar aqui quando precisar, certo? Se estiver com dor ou quiser conversar comigo…
A mulher agradeceu com a voz fraca. Saiu do consultório com uma postura ainda mais triste. Olhando para o chão, caminhava a passos lentos como quem não tem pressa para chegar ao seu destino. Passaria na recepção para marcar o exame e seguiria em direção a casa que provavelmente dividia com o autor da fratura.
No consultório, o médico permaneceu preocupado com o futuro de Maria e de seus filhos. Decidiu buscar a Assistência Social para oferecer apoio a sua paciente sem denunciar o fato, pois sabia que a vítima não procuraria a polícia.
Inúmeros motivos podem ter impedido Maria de denunciar o seu agressor; talvez a ineficiência da Justiça em julgar casos de violência contra a mulher, o receio de ficar longe dos filhos ou quem sabe o medo de ser mais um número nos registros de feminicídio.
O que quebrou o nariz de Maria foi o machismo, mas isso não apareceu no prontuário médico.
*O nome e as características da personagem não correspondem aos dados do caso que inspirou esta crônica.
Daniel Dornelas é acadêmico de Medicina do Centro Universitário de Caratinga – UNEC, escritor e produtor de conteúdo digital. Acompanhe o autor: @lendocomdaniel