Um dos institutos mais relevantes no regime democrático de qualquer país é a segurança jurídica, que deve ser alvo de absoluta observância para efeito de gerar credibilidade interna e externa, no que diz respeito às decisões que são tomadas em nível de relacionamentos comerciais e, especialmente, sob o ponto de vista jurídico e, com maior razão, sob a perspectiva da entrega da prestação jurisdicional, vinculada à coisa julgada.
Sob esse ponto de vista – entrega da prestação jurisdicional – encontra-se uma disposição na lei processual que rege todo o processo e que deve, ao longo de sua tramitação, em qualquer nível da jurisdição, ser devidamente aplicada: chama-se preclusão, que pode ser temporal, lógica e consumativa. A primeira modalidade – temporal – implica na exata medida em que existe um prazo determinado para a prática de um ato processual e, se a parte a quem incumbe não o levar a efeito, perde-se a oportunidade de fazê-lo. De outro – a lógica – é aquela por meio da qual surge uma incompatibilidade entre um ato já praticado e outro que se pretendia praticar. E, finalmente, a preclusão consumativa, decorre da prática do ato processual correspondente ao cumprimento da determinação judicial.
A modalidade de preclusão mais intensa é a pro judicato, ou seja, aquela em que o Julgador já decidiu uma matéria posta à sua apreciação e, mesmo depois de decidida, resolve, sponte sua, decidir novamente uma questão quando não lhe é mais possível fazê-lo, porque a seu respeito, já ocorreu a preclusão pro judicato, ou seja, proibição ao Julgador de reconsiderar o que já foi decidido e em relação à qual já ocorreu o trânsito em julgado.
Isso porque, em todas essas possibilidades, a cada etapa processual, estaremos diante de uma situação em que se vai construindo o que é denominado de coisa julgada – inciso XXXVI, art. 5º, da CR/1988, ou seja, consolida-se, passo a passo, a construção de uma realidade por meio da qual a decisão final se efetiva, pois, discutida a sentença e vencidas todas as etapas recursais, ocorre o seu trânsito em julgado, de modo que não é mais possível revisitar aquele julgado nos próprios autos e pior, por iniciativa do próprio Judiciário.
Para isso deve-se considerar esgotadas todas as vias recursais possíveis, previstas expressamente na lei processual, ou porque a parte interpôs o recurso cabível e, antes de seu julgamento, dele desistiu. Cabe ainda a possibilidade de sua inadmissão pelas instâncias superiores, por razões que podem variar desde a ausência de preparo das custas devidas e também pela sua intempestividade, além da impropriedade da via recursal eleita pela parte interessada na revisão do julgado proferido e, finalmente, pela inobservância das formalidades legais expressamente previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, forma-se, portanto, a conhecida coisa julgada material, ou seja, encerrando-se a fase de julgamentos. Logo, passa-se, então, à fase de cumprimento do julgado ou da sentença proferida, encerrando-se a atuação jurisdicional no que diz respeito ao mérito dos fatos, ou seja, o réu é ou não é devedor do que se lhe cobra em Juízo, seja dívida, cumprimento de contrato, e, até mesmo, na esfera penal, se ele é culpado ou inocente, enfim, se está quites com o Judiciário ou se vai ser recolhido preso para efeito de cumprir a sua sentença, se tiver sido condenado.
Todavia, um aspecto que necessita de urgente esclarecimento, para efeito de se fechar todo esse raciocínio jurídico: as partes litigantes, ou seja, credor e devedor, órgão do Ministério Público e acusado, necessitam estar em Juízo devidamente representados por seus patronos, mormente no caso do réu; e, o Ministério Público, como aquele que representa a sociedade, ou seja, na esfera penal, o Promotor de Justiça.
Os fatos, normalmente, falam por si. Vale a máxima popular no sentido de que, contra fato não há argumento. Isso constitui uma certeza inabalável a partir do momento em que se estabelece um julgado por meio do qual não há mais nenhuma possibilidade de reversão da decisão já consolidada, pois, constituída a coisa julgada material. Equivale dizer, vencidos os prazos recursais acima mencionados, nem o STF ou qualquer outra instância do Poder Judiciário poderá “rever” o julgamento consumado, encerrando-o, em todos os seus termos, porque os recursos foram esgotados e a eles negado provimento ou, não interpostos regularmente ou inadmitidos por falta de pressupostos ou requisitos processuais.
De qualquer modo, apenas as partes envolvidas no processo podem se insurgir contra a decisão judicial, pois, a nenhum órgão jurisdicional, por iniciativa própria, poderá fazê-lo. Somente em casos especialíssimos em que tenha ocorrido algum tipo de incorreção material, e, ainda assim, essa revisão da sentença criminal pode ocorrer se mediante iniciativa exclusiva de alguma das partes, mediante hipóteses expressamente previstas, no Código de Processo Penal – art. 622 – tem por objetivo desconstituir uma decisão transitada em julgado. Nessa hipótese, exige-se iniciativa da parte prejudicada, cabível até mesmo depois de cumprida a pena que lhe foi imposta. E para piorar toda a situação, sobretudo se a sentença tiver transitado em julgado, mais complexa ainda é essa realidade. Especificamente, quando as sentenças condenatórias, porque transitadas em julgado, encontrando-se em fase de cumprimento, ainda que provisoriamente, conforme a decisão do STF – condenação em 2º grau.
Há um livro intitulado Trumpet Gideon ou, “As Trombetas de Gideão”, e que se tornou filme, constante de um “caso verídico, ocorrido no início da década de 1960 nos EUA, onde Clarence Gideon, vivido por Henry Fonda, é condenado a cinco anos de prisão por um pequeno roubo, sem ter a assistência de um advogado. Ao ingressar no presídio, Gideon passa, obstinadamente, a preparar, através de leituras na biblioteca da penitenciária, um recurso (certiorari) à Suprema Corte dos EUA, a qual, sob a presidência do lendário Chief-Justice Earl Warren, anulou o julgamento e nomeou, para a defesa de Gideon, ninguém menos do que o famoso advogado Abe Fortas, anos mais tarde nomeado para integrar aquela Corte. Em decisão histórica, o mais alto tribunal dos EUA firmou, a partir de então, o entendimento de que a assistência de um advogado é um direito fundamental do acusado”. (Disponível em http://portaldireitopordireito.blogspot.com/2011/12/as-trombetas-de-gideao-gideons-trumpet.html).
O fato é que esse julgamento repercutiu em 7.244 processos cujos réus tinham sido julgados sem que se lhes tivessem nomeado defensor e, por isso, todos eles, a começar do acusado Gideon, foram anulados por iniciativa da Suprema Corte Americana, porque, no sistema common law, vigente nos Estados Unidos da América desde a sua colonização pela Inglaterra, perpetuou-se ao longo de sua História, o chamado sistema de precedentes, fundamentado no stare decisis – está decidido -, modalidade por meio da qual os chamados precedentes vão sendo adotados para efeito de amparar os próprios Julgadores quando se depararem com casos idênticos, e tais precedentes têm o propósito de orientar novos casos, sob o fundamento de que está decidido. Logo, não há que se falar em decisão diferente daquela que sustentou aquele julgamento. Prevalece, portanto, o entendimento consolidado no precedente.
Entretanto, no Brasil, impera o que se chama de jurisprudência, ou seja, os julgados proferidos anteriormente pelos Tribunais e que orientam os julgamentos futuros. Isso quer dizer, não têm efeito vinculante e, por isso mesmo – com exceção das súmulas vinculantes e decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade – não têm, definitivamente, a possibilidade de autorizar qualquer órgão do Poder Judiciário, por mais elevada que seja a sua posição na estrutura piramidal do “poder jurisdicional”, por iniciativa própria, sem requerimento de quem quer que seja, para anular, corrigir, determinar novo julgamento ou qualquer medida que tenha por finalidade desconstituir a sentença ou julgado que já constituiu a conhecida coisa julgada material e, como dito, em raríssimas exceções, por iniciativa da própria parte prejudicada e, se acolhida, mormente em sede de revisão criminal.
Isso equivale dizer que no caso concreto posto em julgamento nesta última semana no STF, os votos colhidos, até então, concluíram pela anulação do julgamento do caso do Sr. Aldemir Bendini. De outro lado, foi sinalizado pelos Srs. Ministros que daí decorre a nulidade de todos os demais julgamentos já realizados, sob o fundamento de que “houve prejuízo para a defesa dos acusados”, porque, na condição de delatados, não se lhes permitiu “falar por último”, isto é, apresentar suas razões finais depois de todos os outros envolvidos no processo. E isso decorre de uma situação por meio da qual os memoriais que se elaboram de parte de todos os envolvidos no processo deveriam ser elaborados em prazo comum, ou seja, simultaneamente, num único momento em que se concede essa oportunidade para acusador e assim para todos os acusados.
No sistema jurídico brasileiro vige o conhecido princípio da ação e da defesa, ou seja, somente a própria parte interessada postula em Juízo por meio de um advogado regularmente inscrito na OAB de seu respectivo Estado e, assim, com uma espécie de cadastro na OAB Nacional, que congrega todas as suas Seções Estaduais e Distrital, formando-se um todo. Isso se constitui de uma estrutura por meio da qual se tem acesso à prestação jurisdicional por intermédio de um causídico no exercício regular de sua atividade profissional.
Ora, diante desse contexto, nenhum Tribunal pode, sob qualquer fundamento, por iniciativa própria e sem iniciativa do interessado, exceto o acusado em pauta, cassar ou anular decisões proferidas contra outros réus e que já se encontram em plena execução, mormente aquelas sentenças condenatórias proferidas em segunda instância, cujos réus já foram recolhidos presos em sujeição aos julgados que recusaram guarida aos seus respectivos recursos, e, especialmente, porque os recursos especial e extraordinário não possuem o conhecido efeito suspensivo, ou seja, não interrompe a execução provisória da sentença condenatória.
Admitindo-se, no entanto, essa possibilidade, apenas para argumentar, todas as sentenças que já foram proferidas neste País pelo Poder Judiciário em todas as instâncias jurisdicionais e não apenas aquelas relativas à “Operação Lava Jato”, deverão ser anuladas para que outras sejam proferidas, observando-se os casos em que houve delação de parte de algum co-réu. É bastante clara a realidade, portanto, no exato viés de que, a despeito do argumento acima citado, de que somente os réus envolvidos nos processos dessa “operação” para combater a corrupção endêmica instalada no nosso País nos últimos 15 ou mais anos, serão libertados ou até mesmo liberados do cumprimento de suas penas, por causa de um argumento no sentido de que se construiu um edifício, porém, o andaime foi montado erradamente e, por isso, deve-se “demolir” a obra. Mas, o edifício aí está, para nossa tristeza e vergonha, prestes a ser demolido. Indaga-se: quem vai pagar as possíveis indenizações aos réus até agora condenados e em cumprimento de suas penas? O povo, claro. A ele será entregue mais esta fatura, de valor incalculável. E se tiver ocorrido a prescrição de algumas dessas penas?
Todavia, existe uma possibilidade que pode mudar essa realidade e que chegou a ser considerada no julgamento anterior pela 2ª Turma do STF. Os efeitos dessa decisão poderiam produzir os chamados de prospectivos, isso é, apenas para os processos futuros e não para aqueles que já foram julgados, encontrando-se em fase de execução, e os réus devidamente recolhidos ao cárcere.
Mas, isso poderia ensejar uma realidade em que se argumentaria quanto à ilegalidade da aplicação do efeito futuro desse tipo de decisão. Deve-se considerar que nas ações declaratórias de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, ou, ainda, naquelas em que se debate o descumprimento de preceito fundamental, são aplicados os seus efeitos para os casos futuros, ou seja, aqueles que serão julgados doravante. Esperemos, ainda, que esse edifício não seja demolido por causa da montagem do seu andaime.
Devemos aguardar, alertas, a conclusão desse julgamento que deverá ser encerrado nesta 4ª feira.
Charles De Gaulle, Presidente da França, em visita oficial ao nosso País na década de 1950, afirmou que “O Brasil é sério em falta de seriedade…”. Tomara que essa afirmativa não se cumpra também nessa hipótese.